quarta-feira, 15 de abril de 2009

A Flor de Maio

Decididamente naquele dia eu não estava inspirada. Olhava o bloco de rascunho e o lápis e sentia um profundo desânimo ao pensar que tinha que aprontar aquele discurso para o dia seguinte. No íntimo, estava muito emocionada. Era a primeira vez que me convidavam para paraninfa de uma turma de ginásio.

E ali estava eu, sob o sol tórrido de dezembro, tentando desesperadamente preparar um discurso para a formatura de meus alunos. Eu queria um discurso especial, queria algo que os auxiliasse nessa idade de transição, algo que os fizesse compreender a vida e sua atribulações, algo que os elevasse espiritualmente, enfim, algo que ficasse gravado indelevelmente em suas almas, mesmo depois que deixassem o colégio e se entregassem ao mundo.

Seguia com os olhos uma formiga atarefadíssima, mas a inspiração não chegava. Acompanhava a lenta caminhada das nuvens no céu, mas as idéias não brotavam em minha mente. Olhava o bailado gracioso das borboletas, mas o bloco de rascunho continuava vazio e o lápis abandonado.

Já estava desanimando quando senti alguém a meu lado. Virei-me e foi então que notei sua súbita presença. Olhava-me, com um olhar cheio de uma tristeza terna que inundou minha alma, um olhar profundo e tão enigmático quanto a incrível flor-de-maio que trazia entre os dedos. Milhares de perguntas passaram pela minha mente com a velocidade de um raio. Quem era? Por onde tinha entrado se os portões estavam trancados? E por que os cachorros não latiam anunciando sua presença? E onde tinha arranjado uma flor-de-maio em pleno mês de dezembro? Mas estas perguntas jamais chegaram a ser formuladas; desvaneceram-se no ar, qual bolhas de sabão, ao som de sua voz:

“Vim de um mundo que não mais existe. Há quanto tempo foi isso não posso lhe dizer, pois o tempo nada mais significa para mim. Tenho vagado nas asas do meu amor e também não sei porque estou aqui. Meu mundo era tão belo e eu o amava tanto. Posso lembrar-me dele desde que a vida nele foi criada. E com a vida nasceu o amor, ou talvez com o amor tenha nascido a vida. Amava as formas de vida inferiores, pois lá eu via o Amor da Criação. E perdia-me na contemplação dos animais em sua liberdade selvagem, e entre eles estava sempre o Amor.

E um dia, a mais perfeita forma de vida ganhou consciência, e nasceu para uma vida consciente aquele que viria a dominar o mundo. Era o homem, o ser mais perfeito da Criação, com sistema glandular bem desenvolvido e capaz de captar fielmente as mensagens que recebia da Consciência Cósmica. Espiritualmente era um ser puro, pois ainda não nascera em seu coração a maldade humana. Vivia, assim, em perfeita comunhão com a natureza; vivia, assim, no Paraíso.

Porém, seu próprio meio de via o foi transformando. Seu cérebro, com o passar dos tempos, também acompanhou o ritmo da evolução, aperfeiçoando-se cada vez mais. E o homem da Criação, que vivia, agia e reagia seguindo seus instintos naturais, foi pouco a pouco adquirindo o raciocínio analítico.

E, num dado momento, ele parou, pensou e resolveu. Neste momento, neste exato momento, ele deixou de ser movido pelo instinto, ele resolveu fazer pela primeira vez em sua vida. Ele passou a ser senhor de sua vontade. Percebeu que, para todos os problemas que enfrentava, podia ter duas soluções. Aprendeu a dizer sim e não segundo sua vontade, e não segundo a Vontade que o inspirava. E aprendeu a escolher errado.

E o tempo foi passando, e eu ainda podia ver o Amor nos olhos do ser humano. Ele sofria por seus erros, mas ele amava. Amava sua família, amava a natureza, perdia-se na contemplação de um por-do-sol deslumbrante. E, nesses momento, sua alma comungava com a Alma do Universo e ele sentia, embora não pudesse transmitir aquilo em palavras, que pertencia ao Infinito.

E eu os amava muito, queria fazê-los compreender que estavam mais perto de Deus do que podiam imaginar, mas as palavras eram impotentes para transmitir a eles tudo o que eu tinha para lhes dizer.

Esperei o tempo passar, na esperança de que eles próprios compreendessem a Criação e, conscientemente, voltassem à Mente que os havia criado. Eu acreditava no Amor e esperava o dia em que voltaria novamente à perfeição, mas com uma diferença: no início da Criação, seu espírito perfeito integrava-se na Consciência Cósmica, mas eles não tinham consciência disto e, no final da jornada, voltariam à Comunhão Cósmica conscientemente, movidos pela própria vontade que no início fora a causa de tantos erros. Sim, eu acreditava no Amor, e julgava que o Amor jamais seria banido da face da Terra, não acreditava que os homens pudessem olhar o despertar de um sol radioso no horizonte sem elevar suas almas nas asas do Amor até o Infinito.

O tempo continuou sua marcha lenta e, um dia, reparei um brilho de ódio nos olhos dos homens. Vi-os lançarem-se uns contra os outros na conquista de terras e de poderes. Uma tristeza infinita inundou minha alma, mas vi que não eram muitos os que odiavam tão intensamente. A grande maioria era apenas compelida a lutar, mas os homens ainda guardavam em seus corações a porção de Amor que lhes cabia por direito da Criação. E tive a esperança de que o Amor vencesse, que o Amor transformasse o brilho de ódio de alguns olhares em brilho de afeto por seus semelhantes. Mas a marcha dos tempos mostrou-me que me enganara. O ódio impregnara-se nos corações humanos, e a humanidade começou a se afastar do Infinito.

E, um dia no mundo, nasceu um menino. Nasceu para tornar a ensinar a todos uma linguagem já, então, estranha para eles: a linguagem do Amor. Tentou fazer com que os homens entendessem que são um só ser dividido em vários seres individuais e que somente pelo Amor alcançariam esta unificação no seio da Consciência Universal. Falou de Amor, falou de Paz, mostrou o caminho que leva à Luz. Mas foram poucos os que entenderam a finalidade de sua missão. Guerras foram feitas em nome do Amor que pregou. Por dois mil anos continuou a matança dos inocentes, e tudo em seu nome. A humanidade, infelizmente, não conseguiu realizar o que ele pregou. Torceu suas palavras em benefício próprio, fez barbaridades em nome do Amor.

Em nome do Amor, maridos exigiam das esposas toda uma vida de submissão à sua vontade, às vezes déspota e maldosa. Em nome do Amor, pediam provas de fidelidade, quando o Amor por si é uno com o Universo e, portanto, quem realmente ama não tem dois amores.

Em nome do Amor, queriam os pais realizar nos filhos aquilo que não conseguiram realizar eles mesmos, e exigiam depois dos filhos a recompensa por sua abnegação. Na verdade, queriam possuir os filhos como quem possui um objeto de estimação. E eu tentava fazê-los compreender que os laços de amor que os prendiam à família eram realmente criados por suas mentes e por seus desejos terrenos de amparo e conforto. Queria mostrar-lhes que eram seres livres e que os únicos laços que os uniam eram aqueles que os ligavam à Sociedade Universal. Queria libertá-los de suas emoções, queria libertá-los da matéria, queria fazê-los caminhar na senda que os levaria ao seio do Infinito.

Assim como eu, vários outros também se preocupavam com o destino da humanidade. Já havíamos fundado, desde tempos imemoriais, escolas de mistérios, escolas que ensinavam àqueles que ainda podiam amar as verdades do Universo. No começo, essas escolas eram extremamente secretas e delas só participavam homens escolhidos para continuarem a divulgar o Amor entre os homens. Mas, com o avanço da civilização, o estudo dos mistério foi se divulgando entre os homens. Embora não estudassem devotadamente as leis naturais, queriam ter poderes. E imediatamente após seu primeiro interesse pelo assunto, já se sentiam grandes mestres capazes de todos os prodígios no campo do desconhecido. E passaram para a prática de fenômenos esotéricos sem o menor preparo e conhecimento. Não entendiam que aquilo era uma ciência complexa e que o estudante das leis da natureza tinha que ser um estudante devotado e não uma criança às voltas com uma caixa de mágicas. Não admitiam competidores na arte das ciências ocultas e, ao invés de estudarem e de reunirem-se aos que tinham os mesmos anseios para juntos se esforçarem em melhorar o mundo no que fosse possível, afastaram-se cada vez mais dos que tinham as mesmas tendências, com medo de verem suas pseudo faculdades extrasensoriais superadas pela magia dos seus semelhantes.

Infelizmente, este modo de proceder vinha inerente à maioria das pessoas. Era a herança genética da luta do homem para mais se sobressair. Humildade era coisa que não conheciam. E não entendiam quando a doença lhes minava o organismo, quando os traumas e as doenças nervosas começavam a tomar conta de seus seres. Jamais admitiam seus erros e continuavam a debater-se num lago escuro e profundo, cheio de vaidade, de ciúmes, de ódio por seus semelhantes. E afundavam mais e mais, sem saberem que a mão que lhes estenderia o socorro chegaria assim que o primeiro raio de Amor saísse de seus corações.

Ó Deus, como eu sofria ao vê-los caminharem para um caos total! Poucos eram os que ainda refletiam em si a chama do Amor Universal. E, no entanto, sem essa chama acesa, a luz da Verdade Universal não podia clarear suas mentes. A ciência trouxe muitas verdades, mas fechou o coração dos homens. E nós, que podíamos guiar seus passos, tínhamos que nos ocultar para não sermos destruídos, pois os homens passaram a atribuir a anomalias mentais e a desajustes do subconsciente o que antes era reconhecido como mensagens divinas.

Os que antes eram os mensageiros da palavra divina, passaram a ser examinados pela ciência como animais raros, espécies em degeneração, e tentavam ajustá-los às verdades dos homens.

E lá estava eu, ainda procurando dar aos homens um pouco da Luz que lhes pertencia por direito e que lhes estava sendo arrebatada por seus próprios conhecimentos. Mas, para isso, eu precisava de Amor, e não podia mais encontrá-lo entre os homens. Ó Céus, eu via a humanidade debater-se entre guerras e ódios, entre vícios e conhecimentos errôneos. Os homens embruteciam-se e só se orientavam pelos sentidos físicos. E o Amor foi transformado em suas mentes por um desejo físico de posse, e em nome deste pseudo amor a humanidade prostituiu seus sentimentos mais puros. A ânsia do prazer físico levava-os a extremos. Corrompeu-se a família, corromperam-se os puros ideais dos jovens e até mesmo os ímpetos ardentes e apaixonados da mocidade deixaram de existir, e tudo foi substituído pela degradação moral. A dor invadia a minha alma quando eu via que nem mais os jovens podiam amar. Parecia que já traziam no sangue a semente da corrupção. E as guerras continuavam a tomar conta daquilo que no começo fora tão belo.

E, com horror, eu via o brilho de prazer em seus olhos quando se lançavam na mortandade de seus semelhantes. Com um sorriso nos lábios torturavam seus prisioneiros de guerra, o cheiro de sangue excitava-lhes os sentidos, aguçava-lhes a animalidade já então inata. O homem tornou-se escravo do progresso de sua civilização, e qual Prometeu impotente, era devorado por sua própria ciência.

E eu assistia, sem nada mais poder fazer, a destruição daquela humanidade que eu tanto amava. E onde estava o Amor? O homem já nem mesmo olhava o nascer do sol no horizonte e nem detinha-se na contemplação do Universo que o envolvia. Tudo era horror. Profetas em todas as épocas anunciavam calamidades e tormentas. Pintavam com frases ocultas terrores, os mais terríveis e temíveis. E já vivia a humanidade a espera angustiante do que seria o fim dos tempos, e não sabia que o fim dos tempos já havia começado. O que de tão terrível vinha sendo profetizado já estava acontecendo aos olhos de todos e ninguém se apercebia disso. A juventude corria célere para o abismo criado por seus vícios e paixões. A terra que abrir-se-ia para tragá-los já estava aberta à espera dos incautos que não sabiam e não conseguiam dominar seus instintos bestiais. O amor já se tinha degenerado em sexo pior que animal, pois os animais o utilizavam para a procriação e a humanidade para seus prazeres baixos e vis. O respeito à pessoa humana já não existia. Degradavam seus próprios corpos na ânsia do prazer. Para atingirem seus objetivos, não hesitavam em esmagar seus semelhantes. As religiões não mais os continham. Preceitos de moral ruíam por terra, qual imensas casas que desabam pelo terremoto que abala seus alicerces. O mar da ignorância derramava-se sobre cidades e afogava milhares e milhares de pessoas que recusavam obstinadamente a ver a luz do sol sobre suas cabeças. Já existiam choros e ranger de dentes. O joio estava sendo separado do trigo. E eles criavam seu futuro, um futuro tão negro quanto suas mentes.

E foi numa linda manhã de maio que tudo se acabou. Meu mundo explodiu. Como foi e porque foi, não sei lhe dizer. Se foi pelo ódio ou pelas guerras, se foi pela incompreensão ou pela degradação, não posso saber. Sei apenas que foi pela destruição do Amor. O homem havia se afastado ao máximo da Criação da vida, e o resultado foi a destruição, a Morte.

Estava eu cuidando das minhas flores, quando fui arrebatado pela terrível explosão. Fui salvo nas asas do Amor, subi ao Infinito e deixei minha alma ser absorvida pela Consciência do Universo. E lá encontrei a paz, a Paz profunda que envolve os que amam com o Amor intenso da Criação, com o Amor que faz com que o homem se torne uno com a Mente do Universo, que faz com que a criatura se transforme no próprio Criador. Ó Amor, Amor Universal, possas tu ser ainda revivificado nos corações daqueles que ainda vivem!”


E eu vi, atônita, sua imagem esvair-se no ar. Quem era ele? De onde tinha vindo?

Tudo o que eu já lera sobre ficção científica brotou-me aos atropelos na mente. Seria ele um ser de outro planeta, de um planeta que tivesse um dia sido destruído pela própria ciência de seus habitantes? Não era possível... Essas coisas só aconteciam nos filmes. Uma idéia terrível fez-me correr um frio pela espinha. Seria ele um homem do futuro? Túnel do tempo?... Mas esta idéia pareceu-me ainda mais impossível do que a outra. Então, o que podia ter sido?

Olhei para o céu em busca de alguma resposta, em busca de alguma nave espacial batendo em retirada, ou talvez em busca de um aceno de adeus, mas o que vi foi o sol tórrido de dezembro. Sorri. Ali estava a resposta. Tão simples e eu não percebera. Com certeza, eu fora vítima de alguma alucinação causada pelo calor. Respirei aliviada. Em todo o caso, já tinha agora matéria para o meu discurso. Eu falaria sobre o Amor e talvez, quem sabe, eu contasse a história de um mundo que fora destruído pelo ódio, talvez eu contasse a história de um homem que foi salvo da destruição total pelo Amor que trazia em seu coração. Mas meus alunos provavelmente achariam esta história muito pueril...

Abaixei-me para pegar o lápis que ainda descansava sobre o bloco de rascunho vazio, e prendi a respiração. Lágrimas encheram-me os olhos ao ver sobre o bloco em branco, em pleno mês de dezembro, uma incrível flor-de-maio!


- Márcia Villas-Boas -

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